As escritas trans e a Letra do nome próprio no corpo
Posfácio
“Verba volant, scripta manent”
Márcia Rosa
UFMG – EBP/AMP
O instigante campo de pesquisa pelo qual Souto Maior Sanabio nos conduziu neste
livro ―as escritas trans e a letra do nome próprio no corpo― levou-nos ao provérbio latino,
“as palavras voam, os escritos permanecem”.
A alternância entre o que é passageiro e o que é permanente, entre a transitoriedade e a
eternidade, fez parte das conversas entre Freud (1916/1974) e um jovem poeta, para o qual o
valor a ser atribuído às coisas viria da sua durabilidade; o transitório perderia em valor pela
sua efemeridade. Ao que Freud argumenta, a vida já contém em si a morte, ela só é vida a este
preço e, é isto, precisamente, o que a torna preciosa. Ou seja, a transitoriedade acrescenta
valor às coisas!
Com a psicanálise lacaniana, as falas, assim como os semblantes, vacilam, equivocam,
deslizam, voam e fazem voar, ao passo que o real é aquilo que retorna sempre ao mesmo
lugar. Semblante e real, dois termos fundamentais, portanto.
No horizonte de uma sociedade neoliberal como a nossa, os semblantes giram, giram
rápido e vão se substituindo uns aos outros! Isso torna imperativa a busca por algo que
permaneça. É onde, mais além do falado, busca-se escrever, fixar-se. E, tal como os
semblantes, a escrita nos conduz ao corpo, às suas vestimentas bem como às suas vicissitudes
pulsionais. Contrapondo-se à movimentação dos semblantes, o real ―real da letra― retorna
sempre ao mesmo lugar. E, neste caso, esse lugar é o corpo.
Lacan é provocativo ao afirmar que “o falasser adora seu corpo, porque crê que o tem.
Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é
claro, pois seu corpo sai fora a todo instante” (Lacan, 1976/2007, p. 64). Com isso, ele mostra
haver uma distinção entre o ser e o corpo a qual faz com que a ilusão de uma identidade entre
um e outro se desfaça. O falasser —esse ser que fala com o corpo que tem—, precisamente
por falar estabelece uma relação de exterioridade com seu corpo; ele lhe é, ao mesmo tempo,
o mais íntimo e o mais estranho.
Que o falasser tenha um corpo isso ocorre na medida em que ele é marcado e
recortado pela palavra do Outro; afetado pela linguagem, esse corpo experimenta uma
desnaturalização que inscreve uma perda fundamental abrindo uma hiância. Nela vem se
alojar o gozo, fazendo do corpo um lugar feito de bordas erogeneizadas, de cortes, de orifícios
significantes.
Que o corpo do falasser saia fora o tempo todo, que ele lhe escape, nos leva a
considerar as várias estratégias subjetivas com vistas a tentar tê-lo em mãos, sob controle.
Aqui os semblantes, as vestimentas, os disfarces, as mascaradas têm sua importância, na
medida em que são, elas próprias, constitutivas da realidade corporal. Sabia-o bem Thomas
Carlyle, um pensador e ensaísta do século XIX, quando publicou O Alfaiate Remendado,
Sartor Resartus, —agora um clássico— cujo subtítulo é bastante interessante, “Uma filosofia
das vestimentas”. A religião, a sociedade, a própria linguagem seriam vestimentas; o homem
apresenta-se assim como um ser vestido cujos invólucros estão sempre sendo talhados e
retalhados; ele é o efeito desses cortes e costuras.
No entanto, nossa contemporaneidade não se limita à performatividade dos invólucros,
não se satisfaz com a pluralidade dos disfarces —Verkleidung é o termo freudiano em
Interpretação de Sonhos que se refere aos disfarces, ao travestimento que possibilita que algo
encontre seu caminho no texto do sonho—, ambiciona algo que vá bem mais longe; busca
refazer o alfaiate e, até mesmo, o próprio tecido dos corpos.
Nessas duas estratégias, a dos semblantes e a das intervenções no real do corpo,
encontramos, entre outras, a transexualidade. Ao levar a não-identidade entre o ser e o corpo à
sua radicalidade, disjunção que é a condição mesma de todo falasser, ela busca que o Real se
curve à sua certeza simbólica através de uma escrita no corpo. Apesar desta solução, o corpo
continua saindo fora todo o tempo, o que não torna infrutífera, inútil ou mesmo desnecessária
a busca na medida em que ela possibilita que o gozo se localize e que uma borda no corpo se
inscreva.
A cada um o seu possível, e que ele leve tão longe quanto impossível!
Referências Bibliográficas
Freud, S. (1916) “Sobre a transitoriedade”. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1974, v.
XIV, pp. 345-350
Lacan, J. (1976) O Seminário, livro 23, O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007